sexta-feira, 22 de abril de 2011

Todo homem é a própria caça

Publico aqui em meu blog uma crônica que ainda não li. É do cronista Luís Henrique Pellanda que escreve semanalmente no site vidabreve.com


É uma crônica muito interessante. Vou ler:



Calculo que seja meio-dia. Cruzo a Osório com pressa, tenho pouco tempo para viver entre os turnos do expediente e, detrás de cada palmeira, me espreita uma cigana. Saltam pelo meu caminho, tentam me emboscar, se espalham pela praça anarquicamente, como os bombons de uma caixa violada, coloridas surpresas de Páscoa. São predadoras que se interpõem entre meu corpo e meu futuro; eu resisto à ameaça de suas mãos — vem cá —, ao enigma de seu sotaque, ao babado de seus vestidos — vem cá, vem? —, suas mangas bufantes e acetinadas — vem cá, menino! Não vou, não sou menino, menino onde? Procuro não mover o pescoço, congelo as sobrancelhas, comprimo os beiços, estoico. Basta, digo a mim mesmo, chega dessas aventuras de calçadão. Não as encaro, ciganinhas, mas sim, noto na periferia do meu olho direito uma sugestão agradável de celofane, um tilintar de pulseiras, pedras falsas, dentes de ouro — e por fim um salto, o bote de uma tigresa. Nossos sentidos são armadilhas embutidas na alma, penso. Todo homem é sua própria caça, e comigo não será diferente.
A garra me captura pelo antebraço e sou obrigado a interromper minha marcha vida afora. A fera tem unhas roxas e compridas, o rosto talhado em cobre duro, a voz mais bonita que a boca, os cabelos mais velhos que eu. Atrás de nós, o grande chafariz se desliga abruptamente — o que houve, quem o desligou? — e o mundo parece ficar mais silencioso; na verdade, não me lembro de silêncio mais vasto que aquele, tão devastador e, ao mesmo tempo, familiar. A cigana, imortal, se aproveita da mudez súbita das águas, fala baixo, só para mim:

— Uma mulher…

Não quero ouvir, deixo isso claro, tento libertar meu braço. Ela o aperta ainda mais, aquilo me irrita, me obriga a reagir, a me mover de modo agressivo.

— Uma mulher vai se atravessar no teu rumo.

Que novidade, respondo, e enfim, num arranco mais bruto do cotovelo, me livro de sua mão áspera, tchau, obrigado — vem cá, volta, menino! — e já retomo a direção da Avenida Luiz Xavier, rindo da ironia de ser amaldiçoado por uma cigana justamente ali, no bafo da Boca Maldita, e logo ao meio-dia, hora aberta e perigosa. Quer dizer, calculo que seja meio-dia e checo o antigo relógio da praça: nossa, os ponteiros enlouqueceram, correm no sentido anti-horário, o dos minutos na velocidade dos segundos, o das horas no pique dos minutos. Mas quem é que cuida desse relógio maluco?

Avanço, contrariando quaisquer vaticínios ou presságios, bons ou ruins. Não há retrocesso no tempo, não há remissão de erros, não há pecado nem redenção, não há ressurreição dos mortos. O que passou passou, ficou para trás, assim como a cigana rechaçada a se admirar no espelho d’água daquele chafariz silencioso — isso sim é o passado, uma miragem na superfície imóvel dos líquidos, sendo que até essa imobilidade é também uma imprecisão, uma mentira transparente, e tudo nela é um reflexo ficcional, uma cópia fluida e fugidia do que já foi, do que já fomos ou do que poderíamos ter sido. Por isso mesmo avanço, penso, por pura teimosia e fé, fé no poder das ficções e, se viro à esquerda na Ébano Pereira pela enésima vez na vida, é porque sou teimoso e tenho fé. Minha intenção é tomar um cafezinho, meu futuro é uma mesa circular de madeira escura, uma xícara fumegante diante de mim e, ao lado dela, um bom livro de Flannery O’Connor — outro espelho meu, vivo, de papel e de tinta.

Mas antes disso preciso enfrentar o meu destino. Está escrito: na porta do café, duas mulheres estarão discutindo, e será fácil notar que são prostitutas, ambas feias, doentes e minúsculas, e o sol forte zombará da debilidade de seus gritos, de sua ilusão de força, de sua violência de formigas solitárias. Não, não acompanho a lógica daquela briga, mal compreendo o que dizem as mulherzinhas, de que se acusam? Não sei, não peguei o começo do conflito, somente o seu final, e o epíteto que uma acaba por atirar à carantonha da outra:

— Sua puta! Puta aleijada!

A ofendida emudece por cinco segundos, como o chafariz da Praça Osório ao comando dos acasos, mas logo explode de novo, irrompe numa autodefesa absurda:

— E você, que é só puta? E você, que nem aleijada é?

Agora é o mundo que se cala e reequilibra frente ao abismo revelado por aquela acusação única, inédita. As duas se separam derrotadas, isso é evidente, e cada uma vai para um lado, a tal puta aleijada para o meu, no ombro descarnado uma bolsinha murcha, no olhar o lampejo de uma missão de vingança cumprida. De passagem por mim, que surpresa!, ela me interpela:

— Melhor ser puta e aleijada do que ser puta, puta e só puta.

Pode ser, não possuo condições técnicas para julgar aquilo, o horror de ser tripla e exclusivamente puta. Tampouco consigo detectar, naquela mulher que me atravessa o rumo, aleijão algum. Ela me parece tão perfeita ou insuficiente quanto eu.

Entro no café, me sento a uma mesa isolada, abro minha mochila e tiro, lá de dentro, o livro de Flannery O’Connor. Leio no índice a relação completa de seus contos, e o título de um deles me faz sorrir tristemente, nem sei por que motivo (se bem que a garçonete bonita já sabe, é claro que sabe, sabe que o meu sorriso, qualquer sorriso, aliás, só pode ser para ela). Leio:

— Os aleijados entrarão primeiro, página 554.

Entrarão, sem dúvida. Mas onde? E onde entraremos, todos nós, quando todas as possibilidades de futuro estiverem esgotadas? E isso lá é coisa que se pense enquanto o café nos desce goela abaixo?

Um comentário:

Marcos Seiter disse...

É mágica a escrita.

Bela crônica!